No Mar Elas não poderiam estar
As mulheres nunca estiveram presentes como protagonistas das grandes navegações exploratórias nas histórias dos viajantes. No mar elas só existiram como figuras míticas, sereias, espumas do mar. Na exploração do polo sul aparecem grandes nomes. Sempre de homens, relembrados como capitães pela persistência, destreza ao lidar com a tripulação, criadores engenhosos da estrutura dos barcos e instrumentos de navegação, investidores arrojados que possibilitaram a aventura, cientistas de reconhecida trajetória, minuciosos quanto aos avanços até mesmo do conhecimento da alimentação da tripulação, que à partir da ingestão do agrião e do limão combateu o escorbuto, evitando maiores baixas. Dos homenageados na exploração do hemisfério sul temos uma coleção de nomes: Fernão de Magalhães 1520, Francis Drake 1578, James Cook 1774, James Weddell 1822-1824, James Ross 1841. Embora, especialmente, as navegações em torno da Antártida testemunharam o fato de que as embarcações dos nativos da Terra do Fogo eram usadas principalmente por mulheres. Estas canoas resultaram em cobiçados objetos de troca entre os europeus e a população indígena. Algumas foram expostas para que os contemporâneos não esqueçam deste marco, da contribuição feminina à construção naval. As canoas de fibras vegetais, de aparência frágil, enfrentavam aqueles mares temidos por embarcações mais robustas. Sua engenhosidade consistia em minúcias. Seu fundo era coberto de argila, que era usado como balanço, e lastro, mas também como impedimento de que a embarcação se incinerasse no preparo do alimento, como relata Weddell importante caçador britânico de focas e leões-marínhos do século XIX : “Eu […] fiquei surpreso com seu peso; mas ao suspendê-la ao convés, encontrei uma plataforma de argila, em todo o comprimento do piso, cerca de seis polegadas de espessura; isto tinha a intenção de agir como lastro, e preservar o fundo contra o fogo, que elas continuadamente mantinham na argila”. (WEDDELL, 2010, p. 173). Weddell pode analisá-las, depois de adquirir uma dando em troca duas tiras de metal que reforçavam os barris da época. As “fueguinas’ remavam, pescavam, mergulhavam na água revolta e gelada para coletar crustáceos, construíam as choupanas, criavam os filhos e transportavam os cães de estimação, e inclusive cozinhavam preparando seus alimentos nas embarcações. Nos primórdios dos assentamentos Europeus sobre estas terras ao sul da Patagônia, os missionários ao se confrontarem com o paradigma de um núcleo familiar poligâmico não em terra, mas no mar, acharam que a colonização teria de convencê-las a permanecer no lar, como as mulheres inglesas, cuidando dos afazeres em terra e esperando pelo retorno de seus companheiros. Ainda no relato de James Weddell: “O costume selvagem das mulheres de fazer todos os trabalhos prevalece aqui; elas remam as canoas, enquanto os homens sentam a seu conforto; elas colhem a alimentação do fruto do mar, criam as crianças, constroem as tendas, e, resumidamente, performam todos os deveres que requerem esforço, embora em gratidão, entretanto, os homens demonstram uma afeição às suas esposas, e um cuidado com seus bebês.” (WEDDELL, 2010, p. 167). Os viajantes logo estabeleceram trocas e as canoas acabaram sendo um dos itens colecionáveis de alto valor. Exibidas em instituições culturais, como o Museo Maggiorino Borgatello de Punta Arenas, Chile, estas canoas testemunham o empreendedorismo destas mulheres. A descrição minuciosa de Weddell nos dá as dimensões e engenhosidade na construção da embarcação, feitas com as fibras que revestem a casca de árvores buscadas em outras regiões. Também dá um panorama de como era a atividade pesqueira e a ocupação distribuída nas repartições da canoa, com suas relativas tarefas, mostrando o diferente posicionamento das remadoras na proa e na popa e dos “olheiros”: “O comprimento da canoa era de doze pés e quatro polegadas, e na largura dois pés e duas polegadas; era construída de uma forte casca de Bétula, que parecia ser mais larga do que as árvores da redondeza permitiriam, e que provavelmente foi procurada no interior. Três peças compunham toda a embarcação; uma, era formada pelo piso, e duas os lados; todas costuradas juntamente com ramos robustos. As costelas ou vigas eram de uma forma semicircular, e seus lados chatos posicionados para baixo, e em contato um a outro, de uma maneira vertical; de forma que, com o cimento da argila, a canoa ficasse forte, e capaz de ir contra o vento a uma velocidade rápida. O arranjo interno dos compartimentos parece organizado. Os utensílios de pesca ocupam a primeira divisão; na próxima sentam as mulheres que utilizam os remos principais; a terceira divisão é ocupada pelo lugar do fogo; a quarta é a de apoio, onde as águas são baldeadas para fora; e a próxima segue o lugar onde os homens se sentam; na quinta divisão as fêmeas que utilizam o remo traseiro; e por último é o depósito, onde elas guardam todos seus valores. Suas lanças são geralmente posicionadas ao longo da parte posterior”.(WEDDELL, 2010, p. 173). Diferentemente deste legado feminino, por assim dizer, na história das navegações “indígenas”, as mulheres pescadoras no Brasil não são reconhecidas como profissão. Só como filhas ou esposas de pescador conseguem obter aposentadoria, após confirmarem o parentesco. Isto limita seu acesso à linha de crédito, concedida pelas instituições de fomento à pesca para estas profissionais. São tidas como as que consertam as redes e ajudam a retirá-las do mar, beneficiam o pescado, extraem as espinhas dos peixes, descascam os camarões, removem a carne dos caranguejos. No seguro social são registradas como domésticas, ou micro empreendedoras, o que subverte o sentido, pois para pescadores é considerado o adicional de insalubridade, e o benefício à aposentadoria pode ser conquistado com menos tempo de contribuição, por ser uma profissão de risco, com alta mortalidade. O mar este território fluído e transitório, ainda por ser dimensionado, parece amedrontar àquelas que imageticamente foram relacionadas à agricultura e à casa, e o que esta espacialização propicia: a fixação em um local, a proteção, o resguardo. O mar é um espaço tido como predominantemente masculino. Ali elas não poderiam estar. “O mar talvez seja, dessa forma, um dos últimos territórios a ser domesticado, enquadrado. Daí, talvez, a inserção de atividades como as que compõem a aquacultura, que exigem a organização afilada das long lines onde se cultiva os mariscos, das gaiolas de ostras, enfim, uma organização esquadrinhada, dividida em lotes de produção, diferente dos modos soltos, sem definições fixas, porém organizadas e regradas de pescadoras que atuam na pesca artesanal. O mar e os que pescam, de fato, os últimos redutos livres.” GERBER, 2015, p. 232. O mar para estas empreendedoras é uma atividade extrativista e sazonal. A imprevisibilidade diante das mudanças climáticas é um fator a ser considerado. Ir em busca da pesca é abandonar a agricultura e o local da casa, e tudo o que isto significa socialmente. Por isso os missionários queriam ver no assentamento dos povos, antes nômades, a valorização da estrutura nuclear da família monogâmica como a dos Europeus, e da agricultura cuja base a civilização está assentada. A escassez de alimentação da população indígena no sul da Patagônia, os impulsionava ao mar em busca de alimento. E o mar era um território livre, um desvio segundo Chapmann da estratégia dos missionários do duplo C, Civilizar e Cristianizar: “O 20 de março, Stirling e os demais foram se despedir de Okoko e o encontraram cozinhando peixe para o café-da-manhã. Ele e sua família haviam recebido uma generosa quota extra de comida para que alcançasse o inverno. Como não se podia deixar o suficiente para alimentar a uma família de cinco pessoas durante todo o inverno, Stirling temeu que ‘tanto Ookokko como sua mulher se veriam impulsionados a retomar uma vida canoeira, o que significaria o descuido de seus filhos […] e tudo o que concerne à futura implantação de costumes civilizados’. Stirling já estava aplicando ‘ a estratégia duplo C’”. (CHAPMAN, 2012, p. 499). O empoderamento propiciado pela tecnologia de previsão atmosférica, e localização geográfica facilitou o enfrentamento da navegação quanto às correntes de mar e ventos. Tornou mais previsível o que antes era um desafio enorme. Mas nem por isso facilitou a entrada definitiva das mulheres como seres não mitológicos no mar. O universo tecnológico parece avesso às mulheres conforme Gilbert Simondon (SIMONDON, 2017). Há uma relação ambivalente entre as mulheres e os objetos tecnológicos, como acontece, segundo o autor, com as crianças e com os agricultores. Isto mostra que as mulheres são alienadas à tecnologia. E se comportam de uma maneira alienante com os objetos técnicos. As máquinas pilotadas pelas mulheres nas propagandas são as do ambiente doméstico, como a casa, e mais especificamente as da cozinha. Só recentemente os carros foram associados à possibilidade de serem pilotados por mulheres, por entenderem que o mercado consumidor era constituído de mulheres. Segundo o autor, esta relação nociva pode ser alterada se a mulher, junto ao objeto técnico, se emancipar e não considerar a máquina apenas como um servo. Mas será ainda necessário incluir as mulheres no conceito de rede. Para Simondon, há três tipos de estados dos modos de existência dos objetos técnicos: o estático, o dinâmico e o reticular. É neste último estado, o reticular, no espaço esquadrinhado, que Simondon inclui as redes, as tão comentadas redes de tecnociência de Bruno Latour, um autor posterior a Simondon. Incluir as mulheres nas rotas de navegação, é incluí-las no conceito de rede. Redes de navegação, redes de colaboração, redes de canoeiros, de tropeiros, redes de caminhantes. Redes antes consideradas como rotas de tráfego terrestre, marítimo ou aéreo, pontos de internet conectados, estradas de informação. Redes não apenas como cabeamentos de eletricidade, gasodutos, oleodutos etc., mas redes como nos mostram os antigos traçados das navegações, nos rios e rotas marítimas, que serviam para navegação, trazendo materiais e alimentos, trocando informações bélicas sobre a presença de possíveis inimigos, e embarcações desconhecidas à vista. Caminhos abertos a facada, traçados conforme a topografia, pontos religados de cultura de uma península a outra. Como nos coloca Simondon (SIMONDON, 2017, p.426): “ primeiro, estão as redes que existem para transmitir informação; por outra parte, geralmente permitem viajar, permitem o intercâmbio de todo tipo de documentos e permitem a circulação de objetos; constituem uma sorte de universalidade em ato, tanto desde o ponto de vista perceptivo como do ponto de vista operatório”. Parece que a estratégia do duplo C, segundo Chapman, Civilizar e Cristianizar, ainda persiste. Livrar as mulheres dos maus hábitos e depravação, distanciá-las da liberdade excessiva que o mar propicia, é colocá-las, no lar ocupadas com as tarefas tediosas e repetitivas. Suas presenças só são reconhecidas nas alianças e círculos de costura e tricô, o que implica num trabalho compartilhado e de aprendizagem mútua, mas não numa rede. Não foram associadas às redes de navegação, comunicação e informação, como os homens tradicionalmente foram. Mas, de fato, elas mereciam este lugar, de navegadoras que enfrentaram as ferozes correntes do extremo sul americano, num clima inóspito, onde os marcos da civilização pareciam fracassar. Referências: CHAPMAN, Anne. Yaganes del Cabo de Hornos. Encuentros con Los Europeos Antes y Después de Darwin. Santiago, Chile: Liberaliza Ediciones: Pehuén, 2012. GERBER, Rose Mary. Mulheres e o Mar. Pescadoras embarcadas no litoral de Santa Catarina, sul do Brasil. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015. SIMONDON,Gilbert. Entrevista sobre la tecnologia con Yves Deforge (1965), in SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2017. Trad. Margarita Martínez; Pablo Esteban Rodriguez WEDDELL, James. A Voyage Towards the South Pole. Performed in the Years 1822-1824. Buenos Aires: Ediciones Winograd, 2010.